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O Barba Azul – Elucidando os arquétipos


O predador natural da psique

O desenvolvimento de uma relação com a natureza selvagem é uma parte essencial da individuação da mulher. Para que isso possa se realizar, a mulher precisa penetrar nas trevas, mas ao mesmo tempo não pode cair irreparavelmente numa armadilha, ser capturada ou morta seja no caminho de ida seja no de volta.

A história do Barba-azul fala desse carcereiro, o homem sinistro que habita a psique  de  todas  as  mulheres,  o  predador inato.  Ele  é uma força específica e indiscutível que precisa ser contida e mantida na memória. Para conter o predador natural da psique, é necessário que as mulheres permaneçam de posse de todos os seus poderes instintivos. Alguns deles são o insight, a intuição, a resistência, a tenacidade no amor, a percepção aguçada, o alcance da sua visão, a audição apurada, os cantos sobre os mortos, a cura intuitiva e o cuidado com seu próprio fogo criativo.


Na interpretação psicológica, recorremos a todos os aspectos do conto de fadas para nos ajudar a representar o drama interno à psique de uma única mulher. O Barba-azul simboliza um complexo profundamente recluso que fica espreitando às margens da vida da mulher, observando, à espera de uma oportunidade para atacar. Embora ele possa se apresentar simbolicamente de modo semelhante ou diferente nas psiques masculinas, ele é um inimigo ancestral e contemporâneo dos dois sexos.

É difícil compreender totalmente a força do Barba-azul por ser ela inata, ou seja, inerente a todos os seres humanos desde o instante do nascimento e, nesse sentido, não ter origem consciente. No entanto, creio que temos uma pista de como sua natureza se desenvolveu no pré-consciente dos seres humanos, pois na história o Barba-azul é chamado de “mágico fracassado”. Por essa ocupação, ele se relaciona com outros contos de fadas que também retraíam o predador maligno da psique como um mago de aparência bastante normativa, mas imensamente destrutiva.

Usando-se essa descrição como um fragmento de arquétipo, podemos compará-la com o que sabemos de feitiçaria fracassada ou de força espiritual fracassada na história dos mitos. O grego Ícaro voou perto demais do sol e suas asas de cera derreteram, lançando-o de volta à terra. O mito do povo zuni “O menino e a águia” fala de um menino que teria passado a pertencer ao reino das águias, não fosse por ele imaginar que poderia desrespeitar as leis da Morte. Enquanto ganhava altitude pêlos céus, seu manto de águia emprestado foi arrancado e ele caiu cumprindo seu triste destino. Na mitologia cristã, Lúcifer reivindicou igualdade com Jeová e foi expulso para o inferno. No folclore há uma série de aprendizes de feiticeiros que ousaram ingenuamente se aventurar além do nível real de seus conhecimentos ou que tentaram transgredir a Natureza. Foram punidos com ferimentos ou cataclismos.

Enquanto examinamos esses leitmotive, vemos que os predadores neles retratados desejam a superioridade e o poder sobre os outros. Eles sofrem de uma espécie de inflação psicológica pela qual desejam ser mais sublimes do que o Inefável, tão importantes quanto ele e iguais a ele. Esse Inefável é aquele que por tradição distribui e controla as forças misteriosas da Natureza, incluindo-se os sistemas da Vida e da Morte e as leis da natureza humana, e assim por diante.

No mito e nas histórias, descobrimos que a conseqüência para uma entidade que tente desrespeitar, dobrar ou alterar o modo de operação do Inefável é o castigo, seja por ter de suportar uma redução da sua capacidade no universo dó mistério e da mágica — como, por exemplo, aprendizes que não têm mais permissão de praticar — ou um exílio solitário longe da terra dos deuses, ou alguma perda semelhante de graça e poder através de dificuldades da fala, de mutilações ou da morte.

Se formos capazes de entender o Barba-azul como o representante interior de todo o mito do proscrito, poderemos também compreender a solidão profunda e inexplicável que às vezes se abate sobre ele (nós) em virtude do fato de ele vivenciar um exílio permanente da salvação.

O problema com o Barba-azul no conto de fadas é que, em vez de alimentar a luz das jovens forças femininas da psique, ele prefere encher-se de ódio e deseja extinguir as luzes da psique. Não é difícil imaginar que, numa conformação tão maligna, esteja enredado alguém que um dia desejou ultrapassar a luz e caiu em desgraça por essa razão. Podemos entender por que motivos, a partir de então, o desterrado passou a manter uma perseguição cruel em busca da luz dos outros. Podemos imaginar que sua esperança seja a de que ele, se conseguisse reunir uma quantidade suficiente de almas, poderia acender uma chama de luz que afinal erradicaria as trevas e corrigiria sua solidão.

Nesse sentido, no início do conto temos um ser terrível no que diz respeito ao seu aspecto não redimido. No entanto, esse fato é uma das verdades cruciais que a irmã mais nova deve reconhecer, que todas as mulheres devem reconhecer: a de que tanto interna quanto externamente existe uma força que atuará opondo-se aos instintos do Self natural e de que essa força maligna é o que é. Embora talvez pudéssemos sentir compaixão por ela, nossos primeiros atos devem ser o do reconhecimento da sua existência, o de nos protegermos da sua devastação e, afinal, o de privá-la de sua energia assassina.

Todas as criaturas precisam aprender que existem predadores. Sem esse conhecimento, a mulher será incapaz de se movimentar com segurança dentro de sua própria floresta sem ser devorada. Compreender o predador significa tornar-se um animal maduro pouco vulnerável à ingenuidade, inexperiência ou insensatez.

Como um rastreador sagaz, o Barba-azul percebe que a filha mais nova está interessada nele, ou seja, que se dispõe a ser sua presa. Ele a pede em casamento e, num momento de exuberância juvenil, que é muitas vezes uma mistura de loucura, prazer, felicidade e interesse sexual, ela diz sim. Que mulher não reconhece esse enredo?

CLARISSA PINKOLA ESTÉS, em Mulheres Que Correm Com Lobos.

Foto: Eddi Van W.

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